Desde há dois meses que todas as sextas-feiras à noite, Carlos Amoroso despe a farda de polícia, funções que desempenha na esquadra do Entroncamento, para vestir a de professor do “sociolecto minderico”. A palavra calão é rejeitada devido à carga pejorativa que carrega. Tem a seu cargo três turmas, duas de adultos e uma de crianças. Ao todo são quase 70 pessoas que andam a estudar o linguajar que foi usado durante décadas pelas gentes de Minde e que Vera Ferreira, 31 anos, formada em Literaturas Modernas (e a fazer uma tese de pós-doutoramento em minderico) e principal incentivadora destas aulas, pensa ter origem nos vendedores de mantas a retalho em feiras da região.
As aulas, de participação gratuita, desenrolam-se no Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro (CAORG). São quase 22h00 e cerca de trinta alunos aguardam pela chegada do professor, que mal chega começa por soltar uma frase. Sentados em cadeiras brancas de plástico dispersas, alguns franzem o sobrolho e perguntam o que quis dizer com aquilo. O interesse dos alunos é patente nas dúvidas que colocam. Com caderno e lápis, tiram notas, consultam apontamentos e tiram dúvidas no dicionário.
Nessa noite o tema é a alimentação e os alunos fazem um exercício que consta num diálogo passado num restaurante. “Cópia Fusca” (Boa Noite). “Os da Matilde, os João Cebola e os Marialvas engravatados estavam cópios?”. A restante classe tenta fazer a tradução, sempre acompanhada pelo professor. Pelo meio, Carlos Amoroso, conta a anedota “do coxo do covão”. Depois de traduzida provoca gargalhada geral. “Quanto mais lerem e escreverem melhor serão na piação”, aponta.
Todos os alunos têm em sua posse um pequeno livro de capa amarela com o título: “A Piação dos Charales de Ninhou”, que é o mesmo que dizer a “Linguagem dos habitantes de Minde”. Uma reedição de 2004 de um volumoso compêndio revisto pelo professor Abílio Madeira Martins, fundador do jornal de Minde. Mas o primeiro dicionário que se conhece de minderico foi compilado por Miguel Coelho dos Reis, notário de Santarém e Pernes, que ofereceu o livro à junta de freguesia em 1970, na altura em que a terra foi visitada pelo então Presidente da República, Américo Tomás.
Carlos Amoroso começou a interessar-se pelo minderico quando ouviu um vizinho dizer umas palavras. Gostou e dois amigos de Minde ofereceram-lhe um dicionário. “Ganhei-lhe o gosto e comecei a ler sobre a piação, a fazer pesquisas na internet e cada vez gostava mais”, explicou a O MIRANTE. Foi adquirindo mais dicionários. Recorda noites sem dormir a estudar o minderico.
Começou a escrever textos e a fazer traduções de qualquer programa que via nos cafés. A frequentar a vila, de que gosta muito. “Considero-me um minderico do fundo do coração. Só não o sou a 100 por cento, porque não nasci em Minde”. Tamanha dedicação leva-o, por vezes, no seu dia-a-dia, a falar minderico sem dar conta. “Tenho de voltar atrás com a conversa porque as pessoas não percebem”, aponta.
Henrique Lobo, 40 anos, um dos alunos, conta que o seu interesse pelo minderico tem crescido bastante nos últimos tempos. “Desde miúdo que me lembro dos termos em minderico, especialmente das palavras mais marotas. Agora, acabo por trocar e-mails com os meus amigos em minderico”, explica.
Para Maria Alzira Roque Gameiro, responsável pelo CAORG, as aulas são mais um incentivo para envolver a gente da terra nas actividades do centro cultural. “Isto é algo que nos identifica”, ressalva. E por isso também ela anota cada termo novo num caderno. Alzira Gameiro recorda que foi há três anos que lhe apareceu a proposta vinda de Vera Ferreira, a jovem da Batalha que se encontrava a desenvolver uma tese pós-doutoramento em minderico em Munique, Alemanha.
“Disse-me que ia pedir uma bolsa de estudo e ia provar que o minderico não era um linguajar, nem um calão mas uma língua. Incentivei-a”, recorda. As aulas de minderico começaram logo que a bolsa, cedida pela Fundação Volkswagen (ver caixa), foi atribuída à investigadora. Foram afixados cartazes pela vila e até na missa o padre anunciou que iriam ter início as aulas. Com alguma surpresa para os dinamizadores, a adesão foi grande e quase imediata.
Defender o minderico como língua ameaçada
Vera Ferreira conta que começou a trabalhar com o minderico por mero acaso, quando um pequenino livro de minderico, oferecido ao seu pai, lhe chegou às mãos. Como andava a estudar Línguas em Coimbra e nenhum trabalho de investigação tinha sido feito nessa área decidiu estudar o minderico a nível científico e da linguística. Desde 2000 a trabalhar na Alemanha, Vera Ferreira sabia que a Fundação Volkswagen tinha um programa de documentação de línguas ameaçadas. Apresentou o projecto para fazer a revitalização do minderico e, há seis meses, conseguiu financiamento para a documentação do estudo.
“O minderico sempre foi ignorado em Portugal”, lamenta. Por isso, durante os últimos dois meses, Vera Ferreira andou pela vila a fazer entrevistas (audio e vídeo) às pessoas mais antigas da terra, dinamizou as aulas de minderico e reuniu com a junta e Câmara de Alcanena afim de as convencer da importância em salvar o dialecto. “O minderico foi uma linguagem secreta. Não é calão. Até porque esta era uma linguagem dominante e utilizada em muitos contextos e foi passada de pais para filhos”, defende.
Publicado no "O MIRANTE"
As aulas, de participação gratuita, desenrolam-se no Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro (CAORG). São quase 22h00 e cerca de trinta alunos aguardam pela chegada do professor, que mal chega começa por soltar uma frase. Sentados em cadeiras brancas de plástico dispersas, alguns franzem o sobrolho e perguntam o que quis dizer com aquilo. O interesse dos alunos é patente nas dúvidas que colocam. Com caderno e lápis, tiram notas, consultam apontamentos e tiram dúvidas no dicionário.
Nessa noite o tema é a alimentação e os alunos fazem um exercício que consta num diálogo passado num restaurante. “Cópia Fusca” (Boa Noite). “Os da Matilde, os João Cebola e os Marialvas engravatados estavam cópios?”. A restante classe tenta fazer a tradução, sempre acompanhada pelo professor. Pelo meio, Carlos Amoroso, conta a anedota “do coxo do covão”. Depois de traduzida provoca gargalhada geral. “Quanto mais lerem e escreverem melhor serão na piação”, aponta.
Todos os alunos têm em sua posse um pequeno livro de capa amarela com o título: “A Piação dos Charales de Ninhou”, que é o mesmo que dizer a “Linguagem dos habitantes de Minde”. Uma reedição de 2004 de um volumoso compêndio revisto pelo professor Abílio Madeira Martins, fundador do jornal de Minde. Mas o primeiro dicionário que se conhece de minderico foi compilado por Miguel Coelho dos Reis, notário de Santarém e Pernes, que ofereceu o livro à junta de freguesia em 1970, na altura em que a terra foi visitada pelo então Presidente da República, Américo Tomás.
Carlos Amoroso começou a interessar-se pelo minderico quando ouviu um vizinho dizer umas palavras. Gostou e dois amigos de Minde ofereceram-lhe um dicionário. “Ganhei-lhe o gosto e comecei a ler sobre a piação, a fazer pesquisas na internet e cada vez gostava mais”, explicou a O MIRANTE. Foi adquirindo mais dicionários. Recorda noites sem dormir a estudar o minderico.
Começou a escrever textos e a fazer traduções de qualquer programa que via nos cafés. A frequentar a vila, de que gosta muito. “Considero-me um minderico do fundo do coração. Só não o sou a 100 por cento, porque não nasci em Minde”. Tamanha dedicação leva-o, por vezes, no seu dia-a-dia, a falar minderico sem dar conta. “Tenho de voltar atrás com a conversa porque as pessoas não percebem”, aponta.
Henrique Lobo, 40 anos, um dos alunos, conta que o seu interesse pelo minderico tem crescido bastante nos últimos tempos. “Desde miúdo que me lembro dos termos em minderico, especialmente das palavras mais marotas. Agora, acabo por trocar e-mails com os meus amigos em minderico”, explica.
Para Maria Alzira Roque Gameiro, responsável pelo CAORG, as aulas são mais um incentivo para envolver a gente da terra nas actividades do centro cultural. “Isto é algo que nos identifica”, ressalva. E por isso também ela anota cada termo novo num caderno. Alzira Gameiro recorda que foi há três anos que lhe apareceu a proposta vinda de Vera Ferreira, a jovem da Batalha que se encontrava a desenvolver uma tese pós-doutoramento em minderico em Munique, Alemanha.
“Disse-me que ia pedir uma bolsa de estudo e ia provar que o minderico não era um linguajar, nem um calão mas uma língua. Incentivei-a”, recorda. As aulas de minderico começaram logo que a bolsa, cedida pela Fundação Volkswagen (ver caixa), foi atribuída à investigadora. Foram afixados cartazes pela vila e até na missa o padre anunciou que iriam ter início as aulas. Com alguma surpresa para os dinamizadores, a adesão foi grande e quase imediata.
Defender o minderico como língua ameaçada
Vera Ferreira conta que começou a trabalhar com o minderico por mero acaso, quando um pequenino livro de minderico, oferecido ao seu pai, lhe chegou às mãos. Como andava a estudar Línguas em Coimbra e nenhum trabalho de investigação tinha sido feito nessa área decidiu estudar o minderico a nível científico e da linguística. Desde 2000 a trabalhar na Alemanha, Vera Ferreira sabia que a Fundação Volkswagen tinha um programa de documentação de línguas ameaçadas. Apresentou o projecto para fazer a revitalização do minderico e, há seis meses, conseguiu financiamento para a documentação do estudo.
“O minderico sempre foi ignorado em Portugal”, lamenta. Por isso, durante os últimos dois meses, Vera Ferreira andou pela vila a fazer entrevistas (audio e vídeo) às pessoas mais antigas da terra, dinamizou as aulas de minderico e reuniu com a junta e Câmara de Alcanena afim de as convencer da importância em salvar o dialecto. “O minderico foi uma linguagem secreta. Não é calão. Até porque esta era uma linguagem dominante e utilizada em muitos contextos e foi passada de pais para filhos”, defende.
Publicado no "O MIRANTE"
Sem comentários:
Enviar um comentário